Algumas mudanças em nossos hábitos e formas de ver o mundo são impactadas imediatamente pela tecnologia. Bebês tentando usar livros e revistas como se fossem telas de toque e o impacto da introdução da internet no povo marubo, uma etnia indígena da Amazônia profunda (uma senhora leitura!) são ótimos exemplos. Outras, menos visíveis a olho nu, mas até mais impactantes, se manifestam de maneiras que nem sempre percebemos rapidamente. Uma das deste segundo tipo é o tema do último livro do Jonathan Haidt, A Geração Ansiosa, que virou rapidamente best seller por tocar com profundidade em um ponto nevrálgico, apesar das críticas legítimas. Outra, que parece pouco falada ainda, é como o papel do silêncio, em especial na troca de mensagens instantâneas, mudou nossa forma de nos comunicar.
As conversas por mensagens instantâneas em plataformas móveis, em particular em um país como o Brasil, onde a dominância do WhatsApp é absoluta (em 98% dos telefones!), são um contínuo, quase sempre sem fechamento. Muitas vezes há um “oi”, mas muito raramente tem “tchau” ou “depois a gente fala” - o silêncio, por tempo indeterminado, pode vir à qualquer momento. É um contraste enorme com outros tipos de contato social. As pessoas no geral não saem de situações sociais sem se despedirem - e sair à francesa pode ser visto como mal educado. Em conversas telefônicas, as pessoas se despedem - e é hostilidade aberta desligar na cara. Mesmo nas mensagens instantâneas via PC da juventude dos trintões e quarentões de hoje, estar offline significava estar indisponível e era comum se despedir ao final de uma conversa. O silêncio era previsível e de comum acordo, a conversa tinha fim.
Os brasileiros foram recentemente mencionados por Mark Zuckerberg como os usuários mais frequentes dos audios de WhatsApp no mundo, 4 vezes mais em que em outros países. Um olhar mais empático daria ênfase para questões de acessibilidade (dificuldade física de ler ou digitar) e educacionais (analfabetismo funcional, pouca fluência escrita e capacidade de interpretação de texto). Ainda que esse olhar seja legítimo, são características que compartilhamos com diversos outros países em desenvolvimento e com problemas similares, onde esse uso pesado dos audios não acontece. Um olhar mais cínico, mas não inverdadeiro, daria ênfase à priorização da própria conveniência, sinalizando que a de quem recebe vale menos (“Vou mandar por audio que é mais fácil” - mais fácil para quem?), reforçando a falta de civilidade que infelizmente nos caracteriza como cultura. O que é certo é que a ausência de uma etiqueta universal neste tipo de comunicação cria tensão e frustra enviadores e recebedores - parece que estes últimos mais.
Não é só no Brasil que essa ausência de etiqueta é problemática e percebemos que não dá para depender só do bom senso das pessoas. Diversos países do mundo, incluindo vários da União Européia e da América Latina, como Alemanha, Portugal, Espanha, Argentina e Chile proíbem chefes de enviarem mensagens a seus funcionários fora do horário de trabalho ou desobrigam os contactados de responderem sem qualquer tipo de punição, no que é chamado “direito à desconexão”.
Não existem também códigos, explícitos ou não, sobre tempo de resposta ou sobre quem de fato precisamos responder. Regras básicas da cortesia humana simplesmente não se traduziram às mensagens instantâneas. Lidar com o silêncio inesperado do outro sem explicação ou qualquer gerenciamento de expectativa virou rotina.
Quando o silêncio passa a ser inesperado, ele é facilmente usado como arma ou mal interpretado.
A própria onda de palavrinhas para descrever comportamentos online considerados problemáticos tem o silêncio indesejado ou inesperado como tema central. Ghosting (deixar o outro em silêncio permanente de repente, sumindo como um fantasma), orbiting (é o que faz quem sinaliza interesse com interações online, mas ao invés de se aproximar de verdade, fica em silêncio - o famoso “manda foguinho nos stories mas não aborda”), breadcrumbing (manter o outro interessado com o mínimo contato possível, ou seja, usar o silêncio de forma tática) - são fundamentalmente sobre silêncio.
Várias dessas palavras surgiram para falar sobre relacionamentos afetivos, mas também se aplicam a relacionamentos familiares e entre amigos ou até dos profissionais. Sabe o amigo que engaja em tudo que você posta mas não consegue marcar de encontrar nunca? Ou aquele que demora semanas para responder uma mensagem? E aquele cliente que não te retorna nunca sobre a proposta que você passou a semana inteira fazendo?
Do silêncio do outro vem a incerteza, a falta de fechamento, a interpretação distinta da situação do relacionamento - o silêncio na ponta de quem recebe é um teste de Rorschach (sabe aquele que você diz o que vê nos borrões de tinta?) - espelha mais nossos medos e expectativas do que o significado da coisa em si e não necessariamente manifesta a intenção do outro. Um “não” ou uma rejeição aberta pelo menos nos libertam da dúvida.
De certa forma, o silêncio imprevisível do outro é o preço que a gente pagou como indivíduo pelo direito de se fazer indisponível quando quiser, já que a conexão perene é a regra. Será que valeu a pena?
Todo mundo conhece os joguinhos de relacionamento em que quem se mostra menos disponível infla seu valor. A hora em que eu sumo e em que me faço disponível, por quanto tempo e em quais circunstâncias é uma linguagem não verbal poderosíssima, dependendo da maturidade e do interesse dos envolvidos. Poder se dar ao luxo de não responder determinada pessoa também tem um aspecto de assimetria de poder e até de hierarquia. O candidato não responder a empresa durante um processo seletivo é eliminatório, a empresa não responder o candidato, é praticamente padrão. Cliente não responder fornecedor até pode ser ok circunstancialmente, agora fornecedor que não responde cliente, a gente trata como?
O problema é que com o silêncio indeterminado sendo a nova dinâmica padrão na comunicação entre as pessoas, fica mais difícil dar o benefício da dúvida para o outro. A forma como interpretamos o silêncio do outro molda nossas expectativas e reações. Será que estão jogando com a gente? Será que estão nos tratando como menos? Será que não fazem questão de manter o vínculo? Será que isso não está deixando a gente mais paranóico, mais inseguro e mais ansioso? E pelo outro lado, como a gente faz para sinalizar para o outro que só estamos quietos ou indisponíveis, mas nos importamos?
O WhatsApp permite marcar mensagens como não lidas desde 2016, mas o recurso de filtrar as mensagens pelas não lidas foi introduzido só neste ano. O Gmail às vezes destaca mensagens que você recebeu ou enviou que não foram respondidas. O Linkedin recentemente passou a dar lembretes sobre mensagens privadas não respondidas, certamente querendo melhorar as taxas de resposta de prospecções, uma parte fundamental de seu negócio. São coisas que ajudam a evitar que a gente deixe de responder os outros por desorganização ou acidente, mas ainda há muito que pode ser feito em experiência dos usuários para prevenir “vácuos” não intencionais. É incrível como pequenos ajustes como estes mudam as dinâmicas sociais e a vida de bilhões de pessoas e o tamanho da responsabilidade que é cuidar desses produtos tão amplamente usados.
No trabalho, é bom refletir sobre coerência e tratar o outro como gostaríamos de ser tratados, enviando ou recebendo. Não dá para reclamar de ser muito abordado no LinkedIn e aprovar campanha de telemarketing ativo que liga para as pessoas múltiplas vezes por dia ou em horários super inconvenientes. Não dá reclamar do silêncio do outro mandando prospecção genérica e fazendo follow up em 2-3 dias, com o subtexto péssimo para quem recebe sua mensagem que seu tempo vale mais que o dele, quando a verdade é justo o contrário. É mais um efeito da falácia de McNamara em ação - são coisas que parecem razoáveis olhando só os números porque não medimos como elas fazem as pessoas se sentirem.
Na frente mais individual, precisamos pensar melhor no impacto que nossos silêncios causam aos outros, assumindo que está mais fácil que sejam mal interpretados. Em um contexto de pessoas mais solitárias, com menos amigos e saúde mental deteriorada, uma comunicação mais cuidadosa com as expectativas do outro pode fazer do silêncio o que o espaço em branco é para o design - a moldura que dá contraste e permite que o conteúdo brilhe, não mais uma fonte de ansiedade e insegurança.