Fazemos estudos para clientes internacionais com bastante frequência na Zeitgeist, e com isso, a experiência de discutir e explicar o Brasil, sua cultura e particularidades a pessoas que são quase sempre do mundo desenvolvido, é rotina por aqui. É uma ótima oportunidade de entender como somos vistos de fora, assim como de aprender mais sobre a cultura dos outros. Fazer essas pontes entre culturas e subculturas sempre foi parte do nosso DNA e é uma parte muito gostosa do trabalho.
É sempre frustrante (e infelizmente comum) quando quem recebe os projetos não dá muita atenção para as nossas características locais e regionais - sendo que são justamente elas que tantas vezes explicam os resultados, como por exemplo o porquê de um determinado produto ser visto de certa forma. Sem entender a cultura a fundo, você perde coisas que são óbvias para quem faz parte dela.
Os EUA e o Reino Unido, originadores de tantos estudos globais, se enxergam como mercados complexo e diversos (e são mesmo!), impenetráveis para quem é de fora (será?), enquanto o Brasil, por ignorância ou desinteresse, tende muitas vezes a ser visto como um todo coeso e homogêneo. Um dos obstáculos para que se dê a devida importância para isso é que, para muitas multinacionais globais, o Brasil é uma linha menor no faturamento, então o custo do esforço de se aprofundar nessas nuances parece não compensar tanto. Será que isso não é uma profecia autorealizadora, ou pior, um engano caro? Se a oferta fosse mais adequada ao mercado, não traria resultados melhores?
Mais além do etnocentrismo de sempre, esse jeito de ver o mundo ainda pauta muito da discussão sobre comportamento e tendências mesmo dentro de nosso país. Alguns dos nomes mais conhecidos, dentro e fora do Brasil, ainda tratam circunstâncias muito particulares do mundo rico como se fossem “globais” - ou você acha que “quiet quitting” é relevante em país em que “o corre” é definidor da existência periférica e o poder de compra de funcionário de fast food no mundo desenvolvido se compara ao de nossa média gerência corporativa dependendo do momento do câmbio?
Em contrapartida, há um destaque maior para marcas que entendem e respeitam as apropriações locais de cada cultura, como fizeram a Lacoste aqui e o McDonald’s, que usa oficialmente seus apelidos locais em diversos países do mundo. É reflexo de mais autonomia na tomada de decisões dos times locais de marketing e de insights (uma coisa a ser incentivada e celebrada), mas também de uma valorização maior do contexto e do próprio processo de gestão de marca ser mais democrático e uma via de duas mãos.
Existem duas visões simplistas persistentes sobre o lugar do Brasil no fluxo dos novos comportamentos de consumo. Uma, arcaica e elitista, a de achar que o eixo cultural metrópole-colônia permanece inabalado e no fundo no fundo, todos nós aspiramos a ser londrinos ou novaiorquinos. Outra, meio ufanista, meio pensamento desejoso, é a de achar que o Brasil, em seu mar de idiossincrasias e complexidade, é impermeável ao que acontece fora porque cria suas próprias regras, como se fosse uma mistura de Wakanda com Coréia do Norte de dimensões continentais - é um protagonismo que a gente simplesmente não tem, por mais que aqui sejam criadas coisas incríveis e que são muito subvalorizadas. Nenhuma cultura existe no vácuo e entender bem as mecânicas de troca entre elas continua sendo uma enorme vantagem competitiva.
A resposta mais certa, mas que o mercado não quer ouvir, é que a realidade é sempre mais complexa do que esses modelos teóricos que cabem em um slide ou a promessa de uma IA mágica que varre a internet pública e aprende tudo ou entrevista pessoas que não existem. Na ânsia de transformar o entendimento do comportamento humano em framework, ou em bom português, pastelaria (e de preferência colocar marca em um processo proprietário nada transparente™), as nuances e o rigor ficam pelo caminho.
Além do pecado original do marketing, que é tomar o próprio gosto e não o do público como referência, tem duas outras coisas que atrapalham muito esse trabalho de sensemaking: olhar para a cultura do outro como turista e tentar fazer generalizações grandes demais. Mais sobre elas:
Mesmo gente famosa em nosso meio comete erros grosseiros analisando a cultura alheia sem suporte. Martin Lindstrom, o autor de Buyology, Small Data e outros livros celebrados entre marketeiros, designers e pesquisadores sugeriu que “as farmácias e organizações de saúde no Brasil usavam a bandeira da Suiça (!!) para transmitir confiança e ordem.” Na verdade, a cruz foi adotada como símbolo de serviços médicos após a convenção de Genebra para facilitar sua identificação, inclusive em zonas de guerra e, no Brasil, a cruz vermelha em particular tem relação com o início do ensino da enfermagem no Brasil, por isso é tão usado com tanta frequência. O padrão internacional para farmácias, que é a cruz verde, não pegou muito no Brasil e o uso da cruz vermelha inclusive é ilegal - por isso inverter as cores (cruz branca e fundo vermelho) mantém a simbologia e contorna a ilegalidade.
Já teve especialista brasileira falando por aí que “vintage e produtos de segunda mão são tendência no Japão” ignorando que Shimokitazawa, a vizinhança conhecida por seus inúmeros brechós e lojas de vintage em Tóquio, começou a se transformar no que é hoje no pós Guerra, em um contexto de miséria (quando segunda mão era o que dava para comprar) e ocupação por soldados americanos. Isso além de estarmos falando de uma cultura que valoriza os reparos, a imperfeição e que já tem há décadas todo um ecossistema de lojas de usados de tudo quanto é categoria. Tendência de 70 anos atrás ainda conta como tendência?
O fascínio pela novidade do profissional (estereo)típico de marketing funciona muito melhor quando é filtrado pelo senso crítico que vêm com um olhar acadêmico ou jornalístico de questionar as próprias percepções e as bolhas em que vive, além de um esforço constante em entender fundamentos da própria cultura e da dos outros, fechando essas lacunas com quem realmente entende do assunto. A sensibilidade ao novo do olhar externo precisa ser combinada com rigor e contexto local.
Relatórios de tendências vêm de graça em troca do seu email porque tentam ser tudo para todos e acabam não sendo muito para ninguém - é uma categoria que teve o valor destruído pelo pasteurização e pelo influxo de pessoas e empresas, às vezes sem expertise nenhum, querendo surfar no grande interesse no assunto. É um dos efeitos colaterais de tratarmos dados e insights como entretenimento ou uma pausa em nossas rotinas corporativas exaustivas, e do modelo freemium - mas esse é um assunto para outro dia. Tanto que tem gente na nossa área que faz um apanhadão ou uma “meta análise” para ver se tem alguma coisa que dê para aproveitar - algo que seja realmente generalizável ou relevante.
Nem só de Fashion Weeks, cores do ano, rolês de jovens modernos e festivais internacionais de inovação vivem as transformações no universo do consumo - aliás, muito pelo contrário. Chances são que muitas dessas coisas sejam irrelevantes para seus clientes. É preciso separar melhor o que tem a ver com as aspirações dos decisores com o que é relevante mesmo para o público da marca - quem tem que gostar da isca é o peixe, não o pescador.
Existem de fato assuntos e setores que são mais destacados em alguns lugares do mundo. De todas as dietas popularizadas nas últimas décadas (Keto, carnívora, low carb, slow carb, Atkins, jejum intermitente, etc.), várias tem sua origem ou sua popularização diretamente ligadas à Califórnia. Discussões sobre casa e design de interiores invariavelmente vão ter muitas referências italianas e nórdicas. Essa liderança e visibilidade em alguns assuntos é tão importante que alguns países as transformam em políticas de Estado - como é o caso da gastronomia e dos idols na Coréia do Sul e do design na Dinamarca, por exemplo. Mas não é só isso que importa…
Mais além disso, tem lugares do mundo que por serem uma força emergente em algum assunto específico, ou por terem uma relação muito particular com alguma coisa, deveriam ser mais consideradas como inspiração ou objeto de estudo. Pode acontecer também de o próprio mercado ressignificar ou adaptar coisas de uma cultura para outra - aconteceu aqui com o bubble tea taiwanês, com as paletas mexicanas (muito diferentes das originais no México), e com a onda atual do pistache em tudo, certamente ligada à cultura de sorvetes tradicionais de países do Oriente Médio como Síria e Líbano - todos locais fora das referências óbvias. Às vezes não estamos falando necessariamente de um lugar físico - pode ser uma comunidade de pessoas com interesses comuns, como um grupo de entusiastas conectados globalmente, mas mais concentrados em uma determinada geografia. Ninguém é early adopter em tudo - a ciência já desmentiu o mito dos lobos alfa, porque ainda tem gente que acredita que essas classificações se aplicam a humanos?
Será que não faz mais sentido a gente primeiro aceitar a complexidade e depois, tentar sistematizar para o seu contexto, categoria ou marca específica? Será que esse é mais um assunto onde a tentativa de simplificar faz as pessoas confundirem o mapa com o território?
É exatamente por isso que a gente defende que a melhor forma de estudar essas transformações é caso a caso e sob medida.
Começa por aceitar a complexidade. Por entender que o Brasil não é São Paulo e que São Paulo não é Pinheiros. Que tratar uma fatia minúscula de um grupo geracional como representativo do todo é um delírio coletivo. Que a gente tem um monte de novas referências e tradições culturais pouco conhecidas no eixo SP-RJ AB que são imensamente relevantes para muita gente e podem e merecem brilhar mais. Mas também que tem um mundo enorme lá fora cheio de coisas interessantes acontecendo, muitas vezes fora dos grandes palcos e das grandes mídias, que podem ser oportunidades imensas de mercado quando a gente contextualiza e adapta essas coisas para a nossa realidade multifacetada aqui.
Outra coisa que ajuda é não estar pessoalmente investido em ser “cool”. Quando nossa identidade deriva de projetarmos uma certa imagem, a gente tende a gravitar em torno de assuntos que reforcem essa imagem de alguma forma: moda, cultura jovem, indústria do entretenimento, etc. Não ter essa preocupação dá uma clareza porque mesmo assuntos técnicos (seguros B2B, medicações neurológicas, feiras de negócio, saúde animal, etc. - já passamos por todos esses!), ou decididamente “não cool” como crédito consignado ou fraldas para adultos são igualmente interessantes, porque as recompensas não-financeiras são a descoberta e o aprendizado, não ser visto de uma determinada forma. A curiosidade e a capacidade de imaginar o amanhã, mas com os pés firmes no chão das evidências, são estados mentais que não requerem bigode de dono de circo, cabelos multicoloridos, óculos de aro grosso colorido, ter (ou parecer ter) menos de 35 anos ou qualquer outra coisa que possa ser sinalização de ser moderno ou “cool”.
Contando um pouco sobre como fazemos por aqui, na frente de entender o fluxo das inovações e caçar oportunidades fora, nosso papel com os Trend Scouts, além de evitar que a gente se perca na tradução da cultura dos outros, é entender quais lugares são mais influentes para quais assuntos e categorias e saber onde procurar o que tem mais potencial. Escolher para onde vamos olhar já é parte do processo de investigação.
Em 2011, a gente fez um estudo proprietário sobre alimentação saudável em 25 cidades do mundo que identificou propostas de valor emergentes na época que são absolutamente consolidadas hoje e pilares de produtos de muito sucesso: a ênfase na quantidade de proteínas (ponto chave do YoPro, um dos maiores cases recentes no setor), os clean labels e listas minimalistas de ingredientes (ponto chave da RX Bar, fundada em 2012 e vendida para a Kellogg em 2017 por 600 milhões de dólares e com me too brasileiro), as padarias artesanais, entre outras. Em 2014, esse estudo foi apresentado em um evento de um líder global do setor de alimentos e muita coisa ainda era nova para a audiência.
Usando essa mesma metodologia com clientes, já fizemos estudos sobre linhas aéreas (que gerou uma linha de receita que segue aberta até hoje e certamente pagou milhares de vezes pelo estudo), sobre o mercado de beleza, de foodservice, de varejo, e mais muitos outros. Em muitos casos, isso aconteceu em paralelo a métodos quali e quanti, às vezes mais tradicionais, às vezes com o nosso twist, porque aprofundar na nossa realidade é fundamental, não opcional. Em muitos casos, fechamos com workshops e outros entregáveis mão na massa para ajudar nossos clientes a priorizar oportunidades e tirar do papel, porque trazer um monte de caminhos e novidades sem cruzar isso com um entendimento do negócio e das possibilidades das marcas não é estratégia, é entretenimento.
Então, nesse fim de ano em que chovem relatórios de tendência com os mesmos temas gerais de sempre (autenticidade, “a primeira geração nativa digital da história” - era a Y, depois a Z, agora é a Alpha - o que é ser nativo digital mesmo? Dá até para fazer um bingo), esqueça o relatório generalista - se você realmente quer se comprometer em explorar futuros mais vantajosos na sua categoria, inclua um trabalho sob medida em seu planejamento estratégico.