Ensh*ttification: como sobreviver à onda de tranqueira informacional?

Como o "mais que vira menos" puxa a qualidade de tantas coisas para baixo
Rodrigo dos Reis
April 25, 2024

Muitos negócios, na busca por lucratividade, procuram eficiência. Para alguns deles, eficiência é transformar o produto ou serviço no mínimo suportável para as pessoas servidas. Nas plataformas online em particular, esse fenômeno tem nome: ensh*ttification (“Enfezamento”, em uma tradução livre e bem literal) é um termo criado pelo escritor Cory Doctorow em 2022 que se refere ao ciclo de vida das plataformas online: primeiro elas são úteis e criam benefícios aos usuários, depois começam a abusar desses mesmos usuários e privilegiar seus clientes PJ e seus acionistas, piorando gradualmente a qualidade e deixando as pessoas sem alternativas, até a perda completa da relevância que as leva à morte. A ideia ganhou tanta projeção online que foi escolhida Palavra do Ano em 2023 pelo American Dialect Dictionary.

De certa forma, essa ideia não é totalmente nova - empresas de bens de consumo há décadas experimentam substituir matérias primas de produtos por versões mais baratas  para melhorar margens - foi assim que surgiu a cerveja de milho e o chocolate que é fundamentalmente gordura hidrogenada. A diferença é que quando a percepção de perda de qualidade se dissemina, o mercado se auto regula, de várias formas possíveis: por dentro (tornando a qualidade anterior um segmento premium, usando “100% malte” como claim, chocolates bean to bar como um nicho de crescimento rápido, etc.), ou por fora (regulação, migração em massa para outros competidores, etc.)  

Agora, é mais complicado: estamos falando essencialmente de monopólios ou produtos sem alternativas, ou de serviços em que a perda da qualidade só é percebida quando é tarde demais, até pela velocidade em que está acontecendo.

QUANDO MAIS VIRA MENOS

Houve uma queda perceptível na qualidade dos resultados das buscas do Google, em parte causada por uma inundação de conteúdo produzido por LLMs. Google entendeu, está tentando combater de distintas formas.

Estão sendo vendidos “livros” inteiramente escritos usando IA generativa no Amazon, inclusive com casos em que os fraudadores atribuem a obra a autores conhecidos, com pouca ou nenhuma reação da empresa.  

De forma análoga às plataformas online, a síndrome do mais e mais rápido, qualidade a gente vê depois, também chegou à imprensa. Edward Zitron descreveu o contexto em detalhes, e resumiu da seguinte forma:

Every single one of these problems comes back to one point — that far too many industries are run by people who don’t see the customer as the recipient of the value of a product or service. This problem is central to everything I've written, and likely everything I'll ever write. It's bile-inducing and deeply ugly, but awareness is just one step in reversing the course of the Rot Economy.

Como consequência, aconteceu nas tendências - Matt Klein foi o primeiro a alertar. Há uma série de incentivos perversos alinhados para que se publique mais e mais tranqueiras pouco fundamentadas em dados pintadas de “tendências” porque é sabido que esse é um assunto que atrai atenção. Junte-se a isso especialistas autoproclamados que baseiam suas análises nessas pautas. Sabe a fábula do menino e o lobo? Então…

Se olhamos o conceito de forma mais ampla, também aconteceu no vestuário. O americano médio compra 68 peças por ano (2018), 5 vezes mais do que nos anos 80. As forças que empurraram o mercado nessa direção redefiniram expectativas de preço, qualidade e durabilidade - esse é um dos grandes riscos de um setor “enfezado”: a nivelação por baixo. Patagonia entendeu, está tentando combater:

A má notícia é, que como fica claro em alguns dos exemplos acima, a IA já mostrou que seu lado ruim começa a dar as caras muito mais cedo do que outras tecnologias muito impactantes como as mídias sociais. Também chama a atenção como (o mau uso da) IA tem um papel chave na substituição da qualidade pelo volume.

A boa notícia é que quando surge essa piora, há espaço para alguém ocupar o espaço diametralmente oposto (como já dizia o brilhante Al Ries), se que as barreiras de entrada não forem intransponíveis - um grande SE.

MAS E EM INSIGHTS E ENTENDIMENTO DAS PESSOAS?

No negócio de entender pessoas, independente da disciplina, seja UX, CX ou pesquisa de mercado, a mesma lógica do oportunismo unilateral comprado a valor de face por um público sem senso crítico já está acontecendo, com uma grande leva de plataformas prometendo coisas mirabolantes. É um campo de conhecimento mais vulnerável ao “enfezamento” porque os resultados das decisões ruins só são vistos a hora que a casa já caiu e infelizmente tem muito comprador sem conhecimento suficiente. É muito revelador que muitas delas prometem “mais rápido e mais barato”, mas são muito poucas as que prometem “melhor”. Seth Godin já deu a letra…

Drink Coffee Do Stupid Things With More Energy Humor Retro 1950s 1960s Sassy Joke Funny Quote Ironic Campy Ephemera Cool Wall Decor Art Print Poster ...

Algumas, com promessas claramente descoladas da realidade, já despertaram a ira de profissionais de pesquisa, UX e CX internet a fora. O que essa ira não enxerga é justamente a parte mais problemática: é que o público alvo desse tipo de negócio é quem acha que já entende, quem não é capaz de avaliar qualidade, os que acham que demora demais, os que acham que não precisa, os que não entendem como esse trabalho é feito, ou de forma geral, os amadores com um excesso de auto estima injustificável, não os técnicos que dominam (ou deveriam…) o assunto. É justamente aí que mora o perigo - o que será que acontece se a gente “enfeza” a área e as pessoas da empresa que garante a conexão com as necessidades e expectativas de quem paga as contas, e como consequência, protege a empresa do enfezamento? Temos uma responsabilidade coletiva enorme aqui.

O resultado do uso de qualquer plataforma depende de repertório prévio, ou seja, se você não é um expert, não espere que qualquer ferramenta que você usa te torne um. Talvez o melhor exemplo prático disso sejam as ferramentas generativas de imagens - designers, fotógrafos, artistas e pessoas com um bom repertório de técnicas de ilustração, ângulos de câmera, estilos fotográficos, etc. conseguem resultados muito melhores que as imagens com robôs e dashboards azulados que inundaram o Linkedin nesses últimos tempo (aparentemente, ninguém leu sobre ativos distintivos), às vezes acompanhados por textos que parecem ter sido escritos pelo Macaco Louco. Da mesma forma, o repertório melhor implica numa capacidade muito maior de avaliar qualidade e saber o que é “bom o suficiente”.

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MAS E AGORA?

Promessas messiânicas e discurso hiperbólico são sinais de alerta em quase tudo - nesse assunto não deveria ser diferente.

O pensamento crítico e a parcimônia são guias muito mais confiáveis para lidarmos com as novas possibilidades tecnológicas do que a amígdala cerebral e a euforia - os investidores da época das .com que o digam. O bom senso sugere experimentos controlados e em circunstâncias que é possível comparar entradas e resultados e focar em ganhar eficiência nas partes operacionais e não nas intelectuais enquanto a qualidade não for balizada. Só é possível fazer uma avaliação objetiva quando se sabe exatamente do que estamos abrindo mão.

Quando a verba está mais curta, existem múltiplas alternativas que podemos considerar: contratar profissionais fracionais, freelancers, transformar determinadas entregas em um modelo “as a service”, entre outras. Colocar despreparados apoiados em ferramentas ou delegar o trabalho totalmente para elas são as piores alternativas possíveis - inclusive piores do que não fazer nada. Se o resultado do nosso trabalho é tomar decisões melhores, não fazer nada e presumir ignorância é muito melhor do que se escorar em evidências sintéticas e dados duvidosos - inclusive no qualitativo.

É importante pensar também no outro lado do discurso da democratização - o tom populista mascara que o expertise e a experiência das pessoas passa a não ter valor e que qualidade não importa e subestima radicalmente a complexidade das coisas - “é simples, você também pode fazer”. Apesar de os aviões comerciais passarem mais de 90% do tempo de vôo no piloto automático, o treinamento de pilotos leva cerca de 1500 horas. Por que uma função tão crítica como conectar as necessidades das pessoas aos objetivos de negócio seria ok de ser delegada a leigos?

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Existe um futuro possível maravilhoso com bem menos trabalho operacional, visões mais completas das pessoas que precisamos entender e possivelmente descobertas melhores, mas a chegada dele depende de não acreditarmos soluções mágicas. Parar o enfezamento depende muito dessas escolhas - e há muito em jogo!