Estamos normalizando a desonestidade?

Será que a superexposição ao jogo sujo pode estar afetando nossa bússola moral?
Rodrigo dos Reis
February 24, 2025

Muitas notícias recentes fazem as pessoas pensarem se não estamos em uma trajetória de falência moral total e irremediável:

Algumas delas estão especificamente relacionadas com as dinâmicas das mídias sociais:

O truque mais velho do mundo continua funcionando, aparentemente. Via Arnaldo Branco

No nosso mundo de pesquisa, estratégia e insights tem malandragem também...

Universo do estudo: a bolha que mencionou suas metas espontaneamente nas redes nesse intervalo de tempo específico em que essas menções aconteceram. “Já não é mais prioridade “para quem?

Parece familiar? Via Edmond Lau

Quem quiser se proteger dessas vai ter que aprender mais sobre metodologia de pesquisa e viéses ao invés de simplesmente comprar marca ou aceitar recomendação de colega às cegas. Talvez a galera falando que pensamento crítico vai ser a habilidade mais fundamental após eu ter razão.

Quatro vetores na direção errada: autocomparação ampliada, o poder do mau exemplo, visibilidade a todo custo e impunidade

Será que você estará constantemente exposto ao sucesso, independente de ser fictício ou verdadeiro, de pessoas que antes estavam completamente fora do nosso radar, está fazendo mais pessoas irem para o vale tudo?

Essas flutuações de humor têm tanto efeito prático em mercados quanto financeiro que existem índices como o Medo e ganância da CNN Business que existe justamente para tentar medir o comportamento de manada guiado por ambas as emoções. Como sabiamente disse Warren Buffet, quando vemos pessoas que consideramos menos inteligentes do que as pessoas ganhando mais dinheiro do que nós, isso causa um contágio comportamental e irracionalidade, e mesmo pessoas esclarecidas acabam fazendo grandes bobagens.

Será que a promessa de dinheiro fácil e rápido de mercados como apostas, dropshipping, marketing de afiliados e algumas variedades de infoprodutos e criptomoedas estão tornando as pessoas mais gananciosas? Impactando a cultura popular em algum nível ela já está (não abra esse link no escritório!).

O problema da visibilidade ampliada da picaretagem e do dinheiro, presumivelmente fácil, é que pode gerar em quem é honesto ou está fora desse jogo uma sensação de estar ficando para trás ou não estar fazendo o suficiente.

Uma das coisas que caracteriza os tempos que vivemos é a confusão de visibilidade com autoridade. Será que algumas pessoas altamente visíveis estão ficando “grandes demais para falhar” como os bancos em 2008, porque em algum nível a visibilidade sempre é monetizável independente das polêmicas e atrocidades em que se envolviam? UM impunidade também é um incentivo poderosíssimo para comportamentos ruínas, tanto para quem já os faz quanto para quem está pensando em fazer.

Será que, como consequência disso, perseguir a visibilidade a todo custo virou parte do espírito dos nossos tempos por ser mais e mais visto como a forma mais rápida de fabricar credibilidade e transformar em dinheiro?

Aproveitando que a nostalgia dos anos 00 tá com tudo. A versão 2025 seria ganhar seguidores...?

Um dos jeitos mais interessantes de mapear tendências é ver se novos comportamentos estão nutrindo os mercados que sustentam esses comportamentos, medidos por procuração, como dizem os estatísticos. Um exemplo que cabe aqui: o aluguel de carros de luxo, com pacote completo de filmagem e fotografia, está nadando de braçada - é um sinal de que a busca de provas sociais usando relojão, casa quadrada estilo condomínio fechado e esse tipo de carro tá em alta?

Agora dando um passo atrás, será que isso é verdade se olhamos para os grandes arcos da História e para os dados?

Como é a bússola moral dos brasileiros, historicamente?

Já falei aqui antes sobre a confiança interpessoal no Brasil estar entre as mais baixas do mundo de forma muito consistente - com vários desdobramentos práticos, todos indesejáveis - tem um artigo do BID muito legal sobre como isso afeta negócios e gestão pública e certamente afeta nossas relações.

Nossa confiança na classe política é consistentemente uma das mais baixas do mundo e isso não é novidade para ninguém, o problema é que “o que está embaixo é como o que está no alto”, como disse Jorge Ben Jor e, antes dele, os herméticos. Equipe estudo que mostra, ainda que em outros países, que pouca confiança nas instituições leva a uma maior tolerância à corrupção e essas duas coisas têm causalidade mútua, ou seja, uma coisa alimenta a outra.

Tem um monte de coisas que as pessoas consideram dentro de uma zona cinza moral ou coisas que “todo mundo” faz que seriam absolutamente inaceitáveis em outros países:

Todas essas coisas, entre vários outros comportamentos parecidos, sugerem que somos relativistas e não absolutistas moralmente. Há sempre um outro que vemos como tendo vantagens injustas contra nós que usamos para justificar nossos piores atos: o Estado que nos tira tanto nos dando tão pouco em troca, o patrão que exige mais do que o combinado mesmo nos pagando tão mal, a empresa gigantesca malvada que passa a perna nos clientes - um efeito cumulativo da confiança interpessoal e institucional baixa. Ninguém é vilão na própria narrativa, mas ao mesmo tempo a sensação de desonestidade é onipresente - que matemática é essa? Isso sem falar na figura do malandro, que é meio que um mito fundacional do Brasil.

Nós e os outros. Através de Tom Gauld.

Além dessas coisas, na frente dos valores, os brasileiros são razoavelmente consistentes em algumas coisas:

A gente parece estar também numa longa transição de uma moral católica pautada em parte pelo “mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que rico ir para o céu” para um caminho diferente, pautado pela teologia da prosperidade e do número crescente de evangélicos e também pelo número cada vez maior número de pessoas não afiliadas religiosamente. Essa é uma pauta quente nas Humanidades e que afeta as coisas como a forma que as pessoas lidam com o sucesso, o dinheiro e com políticas públicas.

Será que estamos caminhando por uma nova “moral protestante à brasileira”, mais adaptada a um contexto cultural mais “cada um por si” e individualista do que o em outros países predominantemente protestantes, mas desenvolvidos?

Um contraponto forte: a ideia de declinismo moral é recorrente e parece que não se sustenta

Acontece que essa ideia de declinismo moral, que é entender que nossos valores morais coletivos estão piorando, é recorrente há décadas e pode ser uma ilusão coletiva, um outro assunto que eu já mencionei por aqui.

Dois pesquisadores de Harvard e Columbia fizeram um grande estudo baseado na análise de 177 pesquisas de opinião nos EUA (feitas desde os anos 40!) e 58 ao redor do mundo, inclusive no Brasil, e descobriram que essa sensação de piora é constante desde os anos 60 sem sinais claros de uma piora real.

Mas não é tão simples - um outro pesquisador de ilusões coletivas que conduziu diversos estudos, Todd Rose, afirma que as ilusões de um determinado grupo viram opiniões privadas da geração seguinte.

Mas e agora, está acontecendo mesmo?

Tem muitos fatores aqui que podem mesmo estar nos empurrando nessa direção, mas os contrapontos também são muito fortes, em um assunto que é particularmente difícil de medir, até porque conseguir que as pessoas admitam a própria desonestidade publicamente e o efeito dos outros sobre elas não é nada simples. É bem difícil ter uma resposta definitiva e muitas vezes, entender as pessoas é assim.

Mas o aprendizado mesmo aqui é, se as pessoas usam o dado comportamental fácil e barato (mídias sociais) só que com um modo de amostragem gigantesco, a gente corre um enorme risco de tomar tudo por parte e tomar decisões toscas como resultado, um erro cada vez mais comum em muitas empresas - a malandragem com social listening que eu apontei antes no texto tem tudo a ver com isso.

O que é certo é que as pessoas precisam, como executivos e estrategistas, parar de tratar o que acontece nas redes como representante de nossa realidade coletiva, por mais que seja de fato capaz de nos influenciar. E entenda que muitos de nós de marketing e comunicação fazem parte de uma bolha “cronicamente online” totalmente descolada do resto do país, o que faz com que as pessoas ouvir a maioria silenciosa seja cada vez mais importante.

Essa mesma dinâmica de visibilidade a todo custo cria incentivos perversos para que coisas muito impactantes sejam publicadas. mas extremamente mal embasadas, digite “geração Z não bebe mais” ou “geração Z trocou a busca do Google pelo TikTok”. Não é mais só sobre ter acesso à pesquisa, mas saber como avaliar origem e qualidade desses dados e processos e fazer o que a gente que é pesquisador já faz (ou deveria fazer) o tempo inteiro - imaginem as inúmeras formas como as pessoas poderiam estar erradas antes de abrir a boca.